Crónica de Jorge C Ferreira
Notas sobre o passado
Os momentos inconstantes. As interrupções da vida. Um tempo que perdemos. A abstração dos sentidos. Os sentidos perdidos. Um vácuo que se impõe. O vazio da mente. A mente cansada da vítima. A vítima da desgraça.
Vivemos num mundo onde muita gente é alheia a quem vive perto de si, ao seu lado, no seu bairro. Sendo este mundo cada vez mais uma aldeia, principalmente para os que têm algum poder económico, é trágico que o sentido de vizinhança esteja cada vez mais afastado das pessoas. Onde estão os bairros da minha infância, os prédios que eram quase comunidades, as vilas, os pátios, a proximidade? Quase tudo acabou. Agora são os condomínios com garagem de onde se sobe directamente para o respectivo andar. Onde nos cruzamos com pouca gente. Onde vivemos numa cela com número. Onde sobrevivemos uma parte do dia. Só nós, sem conhecermos quem mora ao lado. Só nós e a nossa ignorância sobre a importância de uma boa conversa. Saber ouvir e ter alguém que nos saiba ouvir. Saber o sabor da palavra Amigo. Ansiar por um abraço apertado, por um beijo sussurrado ao ouvido, por uns lábios quentes.
O meu tempo passado, o saber que havia sempre alguém em casa à minha espera, a qualquer hora, saber que sabiam, sempre, por onde tinha andado. Não valia a pena mentir. Todos falavam com todos e se mostravam responsáveis pelos mais novos. Nada passava em claro. Tudo era contado quando fosse considerado perigoso ou errado. A responsabilidade do castigo dependia do tipo da acusação. Julgamentos, na maior parte das vezes, com sentenças honestas e equilibradas. Aceitar sem demonstrar indignação. Tentar sempre driblar os castigos. Nunca mostrar enfado, nem frustração.
Descer a rua e ir até ao fim do mundo. Subir à pendura no amarelo da Carris e descer em andamento antes que o pica nos apanhasse.
Os bairros as saudades imensas. Entretanto começaram a plantar hotéis em todos os sítios. A que, mais tarde, se juntaram os alojamentos locais. Dos antigos habitantes pouco resta. Qualquer dia os turistas vêm visitar os seus conterrâneos num bairro típico. Um subir e descer de trolleys, um barulho ensurdecedor, os novos pregões viraram pragas, as tascas bares e alguns hotéis, chamados de charme, ocuparam antigos prédios recauchutados.
Ainda me lembro dos pátios, das vilas. Da vida comunitária, das festas populares organizadas pelos moradores. Tudo isto não era mais que uma família alargada, que um microcosmo de um mundo inteiro. Uma aliança, um anel, uma vida toda num balão de Santo António que invade um céu estrelado numa noite de bailarico.
Como gosto de vós, meus mais antigos, homens fortes, corajosos e sem fé. A fé era-lhe trazida pelas mulheres, mulheres também corajosas e capazes de coisas impossíveis. Todos os dias penso em vós. Todos os dias estou convosco. Ainda sei o calor das vossas mãos e a tranquilidade que me transmitiam os vossos beijos. Amor que continua a habitar-me. Duras são as saudades.
«Bonito o que escreveste. Principalmente sobre os teus mais velhos.»
Fala de Isaurinda.
«Sabes o que os continuo a adorar. Foram a base do que sou.»
Respondo.
«Não tenho dúvidas e não deve ter sido trabalho fácil.»
De novo Isaurinda, e vai, a rezar noites de orações.
Jorge C Ferreira Novembro/2024(454)
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Bonita crónica , Jorge !
Uma bonita crónica que relata os dramas da vida , mas como só tu sabes contar. De facto , a vida muda muito e nem sempre para melhor. E é aqui que nós somos postos à prova perante a capacidade de nos reinventarmos para enfrentar tudo de ruim que nos acontece .
A nossa vida é composta de mudanças , para pior na maioria dos casos , mas a nossa capacidade de nos espantarmos e reagirmos talvez ponha um travão em determinados desmandos .
Mas uma coisa é certa: o sonho ninguém nos rouba e parafraseando António Gedeão , eu direi :
Eles não sabem, nem sonham
Que o sonho comanda a vida
E que sempre que um homem sonha
O mundo pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança
Obrigado Lénea, minha Amiga. Que belo comentário. É reconfortante ler as tuas palavras. E acabas com esse oedaço da pedra filosofal que nos encanta. A minha gratidão. Abraço grande.
Sempre que te leio acrescento vida à minha. Assim acontece quando leio bons escritores. És dono da tua história, força da resistência a tempos tumultuosos a juntar ao que vivemos. Por razões inevitaveis da vida, tento fazer o exercício de recordar apenas o que me fez feliz. Tão distante e diferente dos dias de hoje. Éramos tão poucos. É verdade Jorge, as saudades são tantas que fico por aqui. Um abraço meu Amigo.
Obrigado Regina, minha Amiga. Tão belo e tocante o teu comentário. Adorei. A minha imensa gratidão. Abraço grande.
Bela crónica! O passado tão real. A mesma geração, outros lugares, a mesma realidade. Tal qual escreve. Vagem no tempo. Todos se conheciam. Os vizinhos ajudavam. O respeito pelos mais velhos. Todos eram iguais. Todos eram família. Os pequenos castigos não eram questionados. As brincadeiras e jogos tradicionais enchiam os largos de risos.
Belas memórias. Tão diferente da indiferença do mundo actual. Parece que muitas vidas já vivi. Como mudou o mundo!
Obrigada Amigo, por estes momentos de reflexão, pelo privilégio da sua escrita.
Grande abraço.
Obrigado Eulália. Excelente o seu comentário. É tão bom quando vamos ao fundo de nós. Sim, já fomos muitas vidas. A minha gratidão Abraço enorme.
apesar de sentir um caroço na garganta.
deste enevoar de cabeça
do nariz como uma chuva miudinha
do corpo a pedir leito.sem ser de rio.
apesar do dia plúmbeo e cabisbaixo.
tinha que vir até aqui.
juntar-me a ti neste que é o hoje.
mais virado para dentro de si.
sem consciência. sem humildade.
sem dar atenção aos que passam…
se apressam. perderam a noção do outro.
algures. num espaço que não o seu…
sem saber como ou o que socorrer.
sem compreender o significado da palavra solidariedade. das mais belas do livro que contempla
milhares delas.
o dicionário.
tinha que vir.
porquê ontem? porquê?
ontem havia aquele bem estar do coração.
aquele saber que havia sempre uma
poeta aberta. um abraço. mesmo fora d’horas.
uma conversa de aproveitar o tempo.
de beber um chá a fumegar.
de despedir com o beijo de cara.
de conhecer todos os que passavam.
e cumprimentavam.
bom dia. boa tarde. boa noite.
olá. miúdo, como cresceste…
e a senhora como vai? e os seus?
e uma flor pendurada num vaso. à janela.
e uma ida dançada para apanhar o sete…
assim te deixo como prometi cronista de memória longa.
com um abraço longo e com perfume a água de colónia
antiga. Heno de Pravia.
porquê do ontem?.
porque também sei de saudade!!!
Obrigado Mena. Dos incómodos até às palavras invandas dos versos que inventas. Sempre uma leitura certeira, sibilina. Adorei como sempre muitíssimo grato. Abraço grande. AS MELHORAS
“ Bonito o que escreveu. Principalmente sobre os seus mais velhos.” Estou de acordo com a resposta da lsaurinda. É maravilhoso lembrar os que nos ensinaram. Como não ter saudades!
Sabe como adoro estas maravilhosas histórias de verdade, que tão deliciosamente descreve e que em tantas situações me revejo. Os vizinhos eram amigos respeitosos, no meu tempo de criança. Lembro-os com saudade. Nunca se esqueciam de mim, quando faziam alguma guloseima, tanto me mimavam. Hoje ninguém tem tempo, nem para dar um beijinho ou um afectuoso abraço.
Como é belo o que li, um texto lindo, delicadamente observado, exactamente como era no passado. Tão diferente nos dias que estamos a viver. Adorei, querido escritor é um prazer ler o que tão bem escreve..
Sempre grata.
Obrigado Maria Luiza. Tanta ternura na sua escrita. Tanto amor achado e tanto amor perdido. Assim vamos fazendo o nosso caminho, querida Amiga. A minha gratidão e um abraço mimado.
Saudosa dos tempos em que vivi na província, em jovem, antes da minha vinda para Lisboa. Todos nos conhecíamos, em pequenos brincávamos na rua, depois das aulas, no verão, as noites de luar iluminavam os muros onde escondíamos o lenço queimado, os degraus onde nos sentávamos a jogar aos disparates e mais tarte, já fazíamos as festas de garagens com pick-up, sem que houvesse preocupação alguma pois todos éramos amigos e filhos de amigos dos pais. Todos íamos à missa ao domingo e as escolas eram de todos.As mães eram amigas e algumas ouviam juntas o Tide juntas nos rádios das casas onde combinavam.
Aos 18 anos os meus pais trouxeram-me para Lisboa para casa de uma casal onde estava com pensão completa com recomendação de só sair para ir ao curso que ia fazer nos CTT para começar a trabalhar. Ia almoçar a casa. Em frente ao Britânico. E a minha história e vida em Lisboa começou assim.
Daqui até ter vizinhos e a deixar de os ter foram muitos anos.
Hoje moro num segundo andar por B. às vezes mora gente na porta A e gente na porta C.
Quando abro a porta do prédio encontro sempre pessoas diferentes. Gosto muito de um cãozinho Colie, não sei em que andar vivem os miúdos que entram com ele..Tudo mudou tanto desde que cheguei a Lisboa!
Obrigado Fernanda. Minha Amiga. Tão linda a história que nos contas. Do Oeste até Lisbia. A cidade grabde branca e encantada. A vida que nos fez crescer.. Tão bom ler o que escreveste. A minha eterna gratidão. Abraço enorme.
A nossa geração (a minha é a mesma que a tua…) foi a que viveu mais mudanças drásticas. Foi a que atravessou o processo rápido de passar “do 8 ao 80”! E nós temos acompanhado isso tudo… Temos que ser feitos de “boa fibra” para aguentar tanta mudança!
Embora me sinta apreensiva por recear o futuro (não por mim, mas pela geração dos nossos filhos e, principalmente, dos nossos netos) penso, muitas vezes, que fui uma privilegiada por ter podido acompanhar tanta coisa… Mesmo os lugares que já não são o que foram (e são tantos!), nós tivemos a sorte de os ter conhecido antes de terem desaparecido ou de se terem deteriorado.
Tento olhar o passado, sem qualquer ponta de saudosismo, como um crescimento com muitos momentos felizes e abraço o presente com a consciência de que nada se repete e que tudo é efémero. Tanto o bom como o mau!
Mas é bonito vermos que algumas coisas se conseguem (ainda!) manter e é muito bom perceber que outras até melhoraram.
Aqui, bem perto de mim, mantém-se uma vila (a Vila Madalena). Um local bem típico e bem preservado por onde gosto de passar e onde existe uma “tasca” perfeitamente integrada no espírito daquela vila. E poder ter isso a poucos metros de minha casa dá-me a alegria de perceber que, das coisas que foram boas, nem tudo se perdeu!
Sempre que leio as tuas crónicas e penso fazer um comentário curto, o meu pensamento acaba por me levar para tantos lugares que me perco e me ponho a divagar…
Obrigada, Amigo Jorge, por tanta viagem que me permites fazer!
Que bela a tua crónica Poeta Jorge C Ferreira. Muitas saudades de tudo o que vivemos. Apreensiva pelo futuro dos nossos Netos. Um abraço de amizade!
Obrigado Claudina. É sempre uma alegria ter-te aqui. O teu comentário sempre assertivo. A minha gratidão querida Amiga. Abraço enorme.
Obrigado Maria. Em cada década a vida mudava. Íamos vivendo coisas novas. Com os nossos netos vai ser a mesma coisa. Também eu acho que estamos acelarados. Mas também no nosso tempo não demos saltos descontinuados e aguentámos. Gostei muito do que escreveste. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.
Li … e vi-me nos sentires que ilustras muito bem!
Realidade pura do ontem, tão diferente da indiferença do hoje.
Emocionei-me … mas FELIZ!!!
Grande e grato abraço!
Obrigado, José Luís, meu Amigo, Poeta. Que bom o teu comentário. A minha imensa gratidão. Abraço grande.